sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O Fogo de Santelmo na Literatura de Viagens – Parte II - Relatos do fenômeno

Na “História Trágico-Marítima” há várias referências interessantes. Na “Relação do Naufrágio da Nau Santa Maria”, um relator anônimo descreve a crença extrema dos marinheiros.
Têm todos os homens do mar tamanha veneração ao Bem-Aventurado S. Frei Pero Gonçalves, e o têm por tão seu advogado nas tormentas do mar, que crêem de todo o seu coração que aquelas exalações que nos tempos fortuitos e tormentosos aparecem sobre os mastros, ou em outras partes da nau são o Santo que os vem visitar e consolar. E, tanto que acertam de ver aquela exalação, acodem todos ao convés a o salvar com grandes gritos e alaridos, dizendo: — ‘Salva, salva, Corpo Santo’. E afirmam que, quando aparecem nas partes altas, e são duas, três ou mais, aquelas exalações, que é sinal que lhes dá bonança; mas, se aparecer uma só, e pelas partes baixas, que denuncia naufrágio. E tão crentes e firmes estão nisto que, quando aquelas exalações aparecem sobre os mastaréus, sobem os marinheiros acima, e afirmam que acham pingos de cera verde; mas eles não os trazem nem os mostram. Ao menos nós não os vimos alguma hora. e se os religiosos que vêm nas naus lhes querem ir à mão, dando-lhes razões para lhes mostrar que aquilo são exalações, e declarando as causas naturais por que se geram e por que aparecem, não falta mais que tomarem as armas e levantarem-se contra quem lhes contradiz aquela sua fé, que por tal o têm.

(Fonte: profteresa)

Um outro relato na mesma coletânea é o de Henrique Dias, criado de D. Antônio, Prior do Crato, na “Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo”, que partiu da Índia em 1560:
“[...] a qual claridade vendo o contramestre e marinheiros da proa a começarem a salvar da parte de Deus e Nossa Senhora e seus Santos, em vozes muito altas a que a gente toda à uma respondia com grandes gemidos e lágrimas [...] Assim que toda a noite se foi nestes gemidos e brados, andando sempre estas luzes conosco.”
Na Etiópia Oriental, de Frei João dos Santos , descrevem-se as aventuras da nau S. Filipe, que tinha saído de Lisboa em 1586.
“[Numa noite de tempestade] apareceu o Corpo Santo em a verga do mastro grande, em figura de uma faísca de fogo, muito clara e resplandecente, e dali, à vista de todos, se foi pôr sobre o mastro da mezena, onde o salvou o piloto da nau, da cadeira em que estava governando, dizendo: Salvé, Corpo Santo, salvé: boa viagem, boa viagem. E toda a mais gente da nau, que presente estava, respondeu da mesma maneira: Boa viagem, boa viagem, com muitas lágrimas de alegria. Neste lugar esteve esta luz resplandecente um grande espaço de tempo e dali desapareceu à vista de todos.”
(Fonte: nunoanjospereira)

Mais à frente, dá-se conta dos conflitos entre mareantes e prelados que esta crença extrema podia desencadear. A determinada altura da borrasca um soldado ajoelhara perante a luz e batera no peito repetidamente exclamando: “Adoro-vos, meu Senhor Pero Gonçalves; vós me salvai neste perigo por vossa misericórdia”. Os padres a bordo advertiram-no de que não deveria orar assim, pois a adoração se devia apenas a Deus e não aos santos. Mas o soldado respondeu “Meu Deus será agora quem deste perigo me tirar”.
Na escrita literária portuguesa aparecem também várias referências interessantes ao fogo de santelmo. Gil Vicente, no Ato segundo, Cena I do “Triunfo do Inferno” coloca um marinheiro a gritar, ao som da ventania endiabrada:
“Ei-lo precioso santo
Frei Pero Gonçalves Bento
PILOTO:
Empara-nos de tanto vento
C’o teu precioso manto
Senhor, libra-nos a malo
GREGÓRIO:
Dêmos à bomba, piloto;
Dai ó demo Frei Gonçalo,
E não Frei Pero Minhoto
PILOTO:
É o bem-aventurado
Frei Pero Gonçalves bento.

(Fonte: flickr)


Camões fala do fogo de santelmo, que descreve como “o lume vivo, que a marítima gente tem por santo” nos dois primeiros versos da estância 18 do Canto V d’Os Lusíadas. A referência insere-se no relato feito por Vasco da Gama ao rei de Melinde, na parte em que enumera as experiências fantásticas testemunhadas pelo narrador:
“Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.”
Bocage alude à crença no soneto Depreciação feita durante uma tempestade:

“Oh Deus, oh Rei do Céu, do mar, da terra
(Pois só me restam lágrimas, clamores),
Suspende os teus horrísonos furores,
O corisco, o trovão, que a tudo aterra:

Nos subterrâneos cárceres encerra
Os procelosos monstros berradores,
Que, enchendo os ares de infernais vapores,
Parece que entre si travaram guerra.
Para nós, compassivo os olhos lança,
Perdoa ao fraco lenho, atende ao pranto
Dos tristes, que em ti põem sua esperança!

Às densas trevas despedaça o manto,
Faze, em sinal de próxima bonança,
brilhar no etéreo tope o lume santo.”

(Fonte: rodrigooliveirablogger)




E Afonso Lopes Vieira, numa paráfrase a um relato da “História Trágico-Marítima”, faz uma chamada ao passado esquecido e lamenta o esmorecimento do culto a S. Pero Gonçalves:
“Por te enramarem coentros,
Entre bailes e folias,
Tu às hortas de Enxobregas,
São Frei Pero, de antes ias.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Pelas outavas da Páscoa
Era o teu dia marcado ;
Vinhas então de Enxobregas
De coentros enramado.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!
Bailando por São Frei Pero,
Não havia homem do mar
Que não tecesse capela
Para ao redor a levar.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Que tamanha devoção!
Mas São Pero, no mar
Acendia a luz nos mastros
Para a tormenta amainar.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Quando se lá acendia,
Essa benta luz de encanto,
Todos no convés em grita:
— Salva, salva, oh Corpo Santo!

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Mas São Frei Pedro, esquecido,
Já não vai às hortas, não;
Não tem bailes nem folias,
No mar não tem devoção.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Por isso as naus se desgarram,
Santo nome de Jesus!
Salva, salva, oh Corpo Santo,
Acende ao alto a tua luz!

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!”

(Fonte: treklens)



As referências literárias e populares são muitas e inequívocas, tais como o são muitos relatos de viagem. Os relatos referem-se a um fenômeno atmosférico verdadeiro, hoje chamado fogo de santelmo. Um fenômeno de tal forma integrado na história e literatura portuguesa que nesta se encontram muitas das descrições históricas que contribuíram para o seu conhecimento científico.
( Texto de Nuno Crato com adaptações)

O Fogo de Santelmo na Literatura de Viagens – Parte I

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